novembro 21, 2017

sessão de terapia - 642 coisas sobre as quais escrever #2


ilustração: keith negley
a palavra terapia soa - em minha cabeça - um tanto invasiva. sentar diante de um (a) estranho (a) e despejar-lhe minhas aflições é algo que causa verdadeira torção de nós no estômago, e mesmo assim, lá vou eu em direção ao consultório do psicólogo.

aflita, sentei na sala de espera tentando manter a postura de quem já fez isso várias vezes e encara aquela consulta como algo muito natural. por dentro gritava "AAAAAAAAAAAAA". o tempo pareceu passar mais lento que o normal e a ansiedade já fazia seu papel: mãos suadas, dores no estômago, cabeça latejando... vontade de sair correndo, mas sem forças para fazê-lo.

eis que ouço chamarem meu nome. levanto decidida, mas as pernas quase cedem sob tamanha responsabilidade de dar os passos finais para fazer da tal terapia.

o nome do psicólogo era jacques (como o famoso psicanalista de sobrenome lacan) e já achei tudo muito caricato - quase uma pegadinha. ele me recebeu alegre, mas com a devida formalidade que o ambiente exigia. apesar disso, ele trajava calça cáqui, tênis esportivo e uma camisa xadrez que provavelmente já viu dias melhores. também cheirava a cigarro.

me sentei em um sofá de dois lugares, feito em couro marrom escuro. parece que o famoso divã caiu em desuso e com isso fiquei aliviada. a ideia de expor meus sentimentos e pensamentos mais íntimos enquanto fico informalmente estirada no dito cujo me parecia ainda mais desconcertante. 

jacques se sentou em uma poltrona posicionada logo à minha frente. empunhando um bloco de notas com a capa preta e uma caneta dessas que parecem caras (e não combinavam com seu figurino desleixado), cruzou as pernas, deu um discreto sorriso e disse "vamos começar?"

antes que eu pudesse organizar meus pensamentos e formar uma frase que fizesse sentido, me debulhei em lágrimas. não foi um choro discreto e imagino que as pessoas do lado de fora, na sala de espera, podiam ouvi-lo com clareza. foi um choro acompanhado de soluços, nariz escorrendo, rosto vermelho e boca trêmula. um espetáculo completo!

criei coragem para levantar o rosto e analisar a reação do psicólogo que sentava ali. para minha surpresa, sua expressão não sofreu qualquer alteração. gentilmente me entregou uma caixa de lenços e depois escreveu uma breve observação em seu bloco de notas. fiquei curiosa mas não soube reagir. 

ainda chorando muito, dei um passeio pelo consultório com o olhar embaçado pelas lágrimas. as paredes eram brancas e nela via-se alguns quadros, certificados e diplomas. num canto à minha esquerda, uma mesa de madeira robusta abrigava um computador com ares de antiguidade. por de trás dela, uma estante cuspia livros distantes de mais para que eu pudesse identificá-los.

sem que eu me desse conta, o choro foi diminuindo e aos poucos consegui tomar as rédias das minhas emoções. me recompondo aos poucos, ouvi a voz de jacques pela terceira vez naquela consulta. sem querer me cortar de maneira abrupta, perguntou se eu estava melhor - ao que respondi com um leve aceno de cabeça -, disse que nosso tempo havia se encerrado e que nos veríamos na semana seguinte. também completou dizendo que a sessão havia sido bastante produtiva, ao que quase reagi com uma gargalhada.

tentei não deixar que ele notasse meu choque ao perceber que havia chorado sem parar por uma hora inteira em frente a um estranho. devolvi a caixa de lenços pela metade, me recompus, peguei a bolsa, me despedi com os olhos fixos no chão e sai. na sala de espera pedi um copo d'água à uma secretária muito solícita. nas cadeiras de espera, um rapaz nervoso de mais para disfarçar. talvez aquela também fosse sua primeira sessão de terapia e meu choro histérico tenha lhe trazido ainda mais preocupação. 

enquanto tomava a água, a porta se abriu e jacques chamou pelo rapaz: "augusto, pode entrar." ele se levantou, me pareceu ainda mais inseguro e as pernas quase cederam sob tamanha responsabilidade. augusto dava os passos finais para fazer da tal terapia.

novembro 18, 2017

uma metáfora sobre a (minha) vida

ou, sobre a chuva que vem de repente

o céu estava aberto e a moça de vestido laranja e sapatos baixos se colocou de pé no ponto de ônibus aguardando veículo que fosse carregá-la ao seu destino. a rua estava movimentada e o comércio ainda funcionava agitado.

aos poucos foi percebendo que o tempo começava a virar. primeiro o vento, em seguida o surgimento ainda tímido de algumas nuvens cinzas. sentiu-se tranquila pois o guarda-chuva estava na bolsa. imagina-se que também pensou consigo "coitado dos despreparados"... disso já não se pode saber com certeza, pois a cena toda era acompanhada a distância, por uma mulher que se debruçou na janela ansiosa pela tempestade que ia passar.  

o vento foi ganhando forças e as nuvens carregadas começaram a perder a timidez, formando uma grossa camada que escondia o céu azulado. a chuva se formava de maneira curiosa: parecia uma escola de samba pronta para cruzar a avenida, indo de um ponto a outro, servindo de espetáculo ao público.

a mulher debruçada na janela observava a cena com curiosidade.

a moça de vestido laranja abriu seu guarda-chuva num gesto confiante de quem tenta estar sempre um passo à frente. olhava para os demais pedestres: uns também já haviam aberto seus guarda-chuvas, outros corriam e procuravam abrigo em alguma loja, com a desculpa de estar procurando alguma coisa para comprar, ou debaixo de alguma marquise, sem tanto pudor. aprumou ainda mais seu corpo, como se fizesse um gesto de vitória: "essa tempestade não me pega!"

a chuva grossa começou a cair. 
a mulher olhava da janela.
a moça de vestido laranja orgulhava-se da sua precaução em forma de guarda-chuva.

a confiança parecia não ser virtude somente dela. perdendo a timidez, o vento soprava cada vez mais forte e fazia esvoaçar os cabelos e o vestido laranja da moça que começava a se incomodar. o guarda-chuva não a protegia do vento que insistia em levar a tempestade até ela.

num sopro repentino, lá se foi o guarda-chuva e com ele, lá se foi a calma da moça de vestido laranja.

ainda na janela, a mulher observava a cena: parecia impossível, mas a tempestade e o vento ganharam ainda mais força.  

a moça de vestido laranja - e agora sem guarda-chuva - dá alguns passos incertos na tentativa de recuperar o objeto que lhe foi tomado. distraiu-se a ponto de não perceber que o vento agora agitava mais que a chuva e soltava no ar pequenas folhas e pedregulhos. 

recuperou o guarda-chuva que havia caído a poucos metros e a mulher da janela pensou ter notado um pequeno sorriso no canto da boca da moça de vestido laranja que ainda se erguia distraída. tão distraída que não percebeu o que vinha em sua direção: ao se virar, o vento a atingiu em cheio com uma pedrada no peito. 

sem graça, curvada e derrotada, a moça de vestido laranja desistiu de esperar pelo ônibus. se pôs rente à calçada segurando seu guarda-chuva em frangalhos, acenou, entrou no táxi e partiu. a mulher da janela pensou:  "lá vai ela. certamente chegará ao seu destino, mas aposto: não esperava levar uma pedrada no caminho."

novembro 15, 2017

ela, tão ela - 642 coisas sobre as quais escrever #1


sentada no sofá, ela faz mil coisas ao mesmo tempo. lê, vê televisão e bate-papo com quem está ao seu lado - sem se esquecer um minuto sequer - de seu telefone. soa quase estranho chamá-la de mulher, pois a alma permanece como a de uma menina. é isso, uma menina mulher de cabelos castanhos e os olhos escuros como o céu da madrugada, sempre acompanhada de seus óculos de grau de aros grossos e pretos. a ansiedade se reflete no suor das mãos, nem grandes nem pequenas. a pele branca é sensível ao mais singelo toque e os arrepios surgem com a facilidade de um sopro. o sorriso, sua característica favorita, é largo e ligeiramente torto. a expressão, às vezes meio enrijecida, a deixa com cara de poucos amigos, mas no fundo o coração é mole como brigadeiro de colher - sua sobremesa preferida. os pés tamanho 38 estão sempre descalços e preferem sapatos baixos.

dança na sala de casa como se a janela não a expusesse ao mundo lá fora. balança o corpo nem gordo nem magro enquanto olha apaixonada o marido que a assiste soltando altas gargalhadas que ecoam pelo apartamento. o nariz pequeno e com a ponta ligeiramente arrebitada vive entupido e ela nem sabe o porquê. ela é assim, distraída, defeituosa e tudo bem. 

a estatura mediana muito engana, pois ao caminhar, a cabeça ultrapassa as nuvens. sonha alto, sonha muito... ela, tão ela.